Já morreu. “Morreu? tá morrido!” como dizia, ligeiro, “ti Fulgêncio”, alcoólico ancião de Aires, Palmela.
Sei que é incorrecto escrever agora mas, antes, tudo fiz por ignorar a pessoa e os seus passos em vida. Sei que passaram quase quatro décadas. Sei sobretudo que NÃO DEVO, mas não resisto.
É trauma por resolver. Se existem traumas de infância este é um deles:
Ano lectivo de 70/71. Escola Preparatória de Bocage a funcionar em escola primária do “plano centenário” com dois pisos e pavilhões pré-fabricados em Montalvão, Setúbal.
Miúdo calmo, eu, lourinho angélico, delicado filho único dos papás, com 10 anos.
Turma masculina, a mais bem comportada de todas que até serviu de cobaia para a integração marginal de meia dúzia de meninas ao fundo da sala, primeira tentativa de mescla sexual no ensino na cidade.
Enfim – bons rapazinhos.
O Mário, o Rui, o Nuno, o Passos, o Tavares, o Puna, o Palma, os outros Paulos, o Fausto, o O'Neill, outros mais. Todos crianças.
É por isso que me revolto ainda. Criancinhas sem direito a reclamar.
Todos filhos de pais que também não tinham direito a reclamações.
Chegávamos a casa com o pescoço negro, negro escuro, dos “calduços” tão fortes que alguns meninos mais frágeis (quem não é frágil com 10 anos?) abatiam-se com o nariz no chão. E apenas porque falávamos. Por nada. Por sussurrarmos ao parceiro. Tamanha violência. Inexplicável brutalidade. Imaginem o pavor naquelas aulas de Ciências da Natureza.
Enaltecem-se agora os feitos de
Maurício Costa. O mestre que se penitenciou, depois, das impiedades cometidas.
Felizmente regenerou e eu não soube. Paradigma do movimento associativo do concelho,
vai ser homenageado.
Que descanse em paz. Merece. Fez de mim um homem de forte pescoço.
PC
PS.: Não devia ter contado isto pois não?